domingo, 31 de março de 2013

Capítulo 3 - O primeiro contacto com a Europa Central.

Saímos de Venezia, confesso que já um pouco enjoado. Parecia saído de uma viagem de barco, interminável apesar de só ter feito 20 minutos de vaporetto na noite anterior. O destino era Salzburg mas tínhamos de trocar de comboio em Innsbruck. Alguma coisa me fez sentir atraído, na paisagem desta viagem. Viria a descobrir mais tarde o quê mas por agora o Tirol e Innsbruck ficaram-me gravados. Foi a primeira vez que dei por mim a desejar voltar e ainda agora tinha começado. De Innsbruck a Salzburg foi tão rápido quanto majestoso. Este país era um retrato, um postal e, ao mesmo tempo, um imponente monumento. Áustria é um país à parte, definitivamente. Parece alheado do que aconteceu recentemente na Europa, fruto da eloquência de um dos seus cidadãos natos.
Salzburg, dia 9 de agosto de 1991, está sol e comemoram-se efusivamente os 200 anos da morte de Wolfgang Mozart. Os cabos elétricos dos tram´s entrelaçam-se nos cruzamentos formando o perfil de Mozart, as janelas dos inúmeros palácios e palacetes enfeitam-se com imagens do músico. É evidente a importância de Mozart para a afirmação da cidade. Depois de provar uns chocolatinhos em forma de Mozart, cobertos com papel com a imagem de Mozart, partímos em busca do Camping Salzburg, algures numa encosta junto à entrada da cidade. Um autocarro levou-nos até cerca de 700 metros da entrada do camping, o resto foi feito a pé. Aqui sentiam-se os quilos da mochila, ainda suficientemente cheia de comida enlatada. A Tânia acusava as alterações às rotinas. Uma prisão de ventre que tinha de rapidamente ser ultrapassada. O laxante quase a impediu de vir connosco visitar o centro mas tudo se resolveu.
Depois de montar a tenda, sentei-me na porta e vislumbrei do topo da encosta, todo o centro de Salzburg e as montanhas verdes em volta. Tive a sensação de já ter visto isto algures e tinha razão, o "Música no coração" fora ali mesmo gravado. Quase que conseguia ver a Julie Andrews a subir por ali acima, na minha direção.
Descemos ao centro e encontrei mais alguns locais que se viam no filme. De resto era Mozart por toda a parte. O clima era pacífico e as pessoas, mais velhas que novas, apresentavam-se bem. Notava-se uma qualidade de vida diferente, ali. Parecia-me mais majestosa mas acabaria por concluir que era uma imagem precipitada que formara. Mais à frente, Europa Central acima, juntavam-se outras qualidades a esta.
De Salzburg fomos para Munchen, ou Munique. A Baviera atravessada de comboio é quase tão bela como o Tirol, mas só quase.
Em Munchen procurei um banco ou uma casa de câmbios, na estação, para descontar um traveller-check em Marcos alemães. Dirigi-me ao empregado de balcão em inglês dado que o alemão e eu não somos muito chegados...nem pouco, tão pouco. O empregado da casa de câmbios, que suponho devesse contar com a presença de não-alemães ali, fez-me uma cara de poucos amigos e respondeu-me em alemão, acho eu. Como sabia o procedimento, limitei-me a dar-lhe o cheque e o passaporte para ele efetuar a troca. Fui surpreendido pelo sorriso e pela pergunta em português:
- Então é de onde? De Lisboa ? Está em viagem, é?
Afinal o pré-classificado de xenófobo (por mim mesmo) era português e facilitou-me imenso a tarefa.
Partida para Berlin. Parece mentira mas é mesmo verdade. O meu coração bate a 200 à hora e a ansiedade sente-se na barriga. Como será Berlin? Estaremos seguros? Encontraremos sítio para dormir? Como será Berlin?
Cheguei a Berlin, pela primeira vez, no dia 14 de Agosto, dia do aniversário do meu Pai. Olhei para cima, para o céu, e fingi que ele me estaria a ver lá de cima, orgulhoso como eu de mim próprio. A estação de Berlin-Zoo transportou-me para as memórias de Christiane-F porém, o perigo não era evidente. Provavelemente nem havia qualquer perigo.
Tanto simbolismo numa só manhã tornou-se cansativo e eu estava a ficar exausto e ainda tínhamos uma cidade para vasculhar e procurar onde ficar. Uma cidade não, Berlin!
O nosso livrinho, Let´s go Europe, indicava-nos uma morada com um camping no centro, ainda que o centro de Berlin fosse uma coisa infinita, vista de dentro. Não fazia ideia onde começava ou acabava, apenas que era gigantesco.
Um camping perdido num parque algo estranho foi onde ficámos. Pelo caminho comecei a reparar em algumas pessoas, na casa dos 70, 80 anos, com aparência lunática. Claramente apresentavam distúrbios mentais. Não sei porquê mas associei-os a doentes traumatizados pela guerra. Talvez até fossem mas não investiguei.
O primeiro local a visitar foram as portas de Brandenburgo, Brandenburger Tor.
Há uma lista imaginária que tenho de alguns locais emblemáticos, as portas de Brandenburgo constam dela. O facto de constar nesta lista fez com que o arrepio se fizesse sentir na minha pele quando me coloquei debaixo do arco central. Eu estava mesmo ali onde há menos de uns meses estava o muro!
Na alameda em frente às portas, estendia-se uma espécie de feira onde se vendiam todas as memórias da União Soviética, desde fardas a medalhas, a passaportes antigos, moedas, relíquias. Haviam também pedaços de muro à venda por 1DM (Deutsche Mark) , ou cem paus para nós. Do muro era tudo o que se avistava aqui perto. Mais à frente podiam ver-se, ainda erguidos, partes do muro de Berlin completamente grafitados.
A cidade parecia um estaleiro gigante. Era rara a praça ou avenida em que não estivessem a decorrer obras de grande escala.  Da parte leste, aparentemente não havia muito que ver. Claramente mais cinzenta e menos ocidental de aspeto. Da parte oeste, uma verdadeira cidade. Não tão metrópole assim mas uma grande, enorme, gigantesca cidade. De um lado mercedes, do outro trabant mas via-se que aquilo ia dar uma mistura mais homogénea, um dia.
Viam-se punks na rua, havia muita música alternativa à venda e uma cervejaria de esquina, não muito longe de Berlin-Zoo hauptbahnoff , com canecas de meio litro a 1,5DM.
O sistema de transportes era inacreditável. Completo, simples, eficiente e nada caro. Viríamos a descobrir a importância das moedas de 2,5 escudos, as de vinte e cinco tostões, brancas, pequeninas. Nas máquinas de venda alemãs valiam 0,5DM, ou 50 pfenning , ou seja, cinquenta paus. Tinham rigorosamente o mesmo tamanho, peso e um valor bem diferente. Os transportes ficaram bastante mais baratos subitamente.
Berlin guarda o passado bem escondido, não gosta que ele se sinta. Não sei se isso é bom ou mau. Por um lado pode ser por vergonha, por outro por fingimento. Não há vestígios dos finais dos anos 30, emblemáticos da tragédia que ali começou. Vive-se apenas o fim aparente, mas oficial, da Guerra Fria. Que consequências haveriam para aquela gente? Quer para os que vivem na parte ocidental como na oriental. E isto, a nível local. Como iria a Europa reagir a esta re-união? Outros fatores desta década de 90 potenciaram o valor desta união. O início da globalização tornaria Berlin como um dos focos do Mundo. A estranheza de ver um país muito desenvolvido aparecer como um país emergente na Europa e no Mundo. Estará apenas a iniciar-se a criação de um novo império, ou será apenas exagero meu?
Muitos kilómetros a pé, de U-bahn e S-bahn feitos em Berlin fizeram-me de novo sentir vontade de voltar a sair daquele cantinho à beira mar plantado, de onde saíra. Berlin é brutal! É enorme, gigante, imponente! E não se podia comparar à também enorme Londres. Aqui era diferente, o conceito de grande associa-se a domínio e rigor que transparecia alguma austeridade acima do que eu conhecia. Em Londres a sensação de liberdade era maior e este era, para já, o meu único termo de comparação.
Era hora de continuar a descobrir. Os 5 dias em Berlin foram tão ricos quanto escassos mas tínhamos planeado voltar a Lisboa no dia 20 e ainda queria visitar a jóia da coroa da Europa.


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